domingo, outubro 30, 2005

A Economia segundo Damásio


António Damásio

No recente artigo de António Damásio e Antoine Bechara: "The somatic marker hypothesis: A neural theory of economic decision", publicado pela revista Games and Economic Behavior, os autores fazem a ligação dos mecanismos neurais de tomada de decisão ao contexto da teoria económica. Esta aproximação entre as duas áreas de conhecimento é facilitada não só pelos desenvolvimentos recentes da neurobiologia mas também pelo facto da teoria económica ter derivado, nas últimas décadas, para um quadro de análise baseado na resposta do ser humano a incentivos.

No seu livro "O Erro de Descartes", Damásio já tinha referido que um dos testes experimentais utilizados para validar a sua hipótese do marcador somático (HMS), o jogo de cartas, simulava o ambiente da vida económica. Sobre este teste veja-se o post do Pura Economia Iowa Gambling Task.


Antoine Bechara

No artigo de Damásio e Bechara começa-se por fazer o ponto de situação das investigações neurológicas sobre os processos de tomada de decisão e a HMS, seguindo-se a demonstração de que "o conhecimento consciente, só por si, não é suficiente para a tomada de decisões vantajosas". Durante o processo de "aprendizagem" das regras do jogo de cartas, por exemplo, os jogadores começam a tomar uma percentagem maior decisões acertadas mesmo antes da descoberta consciente das regras do jogo.

A HMS, proposta com base em testes reais, faz também sentido em termos lógicos: é muito difícil, ou mesmo impossível para o cérebro humano, processar conscientemente toda a (muita) informação necessária a uma tomada de decisão vantajosa, particularmente quando, em situação de perigo (como terá acontecido ao longo da fase pré-histórica de desenvolvimento humano) é essencial decidir muito rapidamente.

Outra revelação do texto é a descrição de situações em que a participação do mecanismo emocional pode ser prejudicial à tomada de decisão:
«A HMS reporta-se a emoções que fazem parte integral da tarefa decisional em causa. Por exemplo, quando temos de decidir se devemos acelerar na auto-estrada porque estamos atrasados, o "pensamento" de vir a ser parado pela polícia ou o "pensamento" de poder sofrer um acidente desencadeiam estados somáticos emocionais (p.ex.: alguma forma de medo). Mas estes estados somáticos são integrantes da tarefa decisional em causa, isto é: acelerar ou não acelerar.
(...)
«Contudo, a indução de estados somáticos que não estão relacionados com a tarefa em causa (por exemplo, receber uma chamada telefónica sobre a morte de algum familiar enquanto se conduz) pode tornar-se disruptiva.»
Na aplicação da HMS à Economia, os autores partem da "assumpção dos economistas" de que as decisões decorrem da avaliação de resultados futuros de várias opções ou alternativas, através de algum tipo de análise custo-benefício": as emoções estão de fora. Ora a HMS fornece evidência à noção de que, frequentemente, as pessoas decidem na base de "palpites" e avaliação subjectiva das consequências.


Peter Drucker

Curiosamente há uma passagem num livro de Peter Drucker - "Memórias de um Economista" - onde se apresenta o exemplo dum velho patrão financeiro que contraria a análise da sua equipa de gestores, favoráveis a um investimento "infalível" apresentado por um homem de grande confiança, vindo-se depois a revelar que os gestores estavam enganados. Mais tarde o financeiro terá explicado a sua decisão: "desconfiei porque o tipo tinha respostas para tudo". Ou seja, o tipo de comportamento que costumamos rotular como "intuitivo".

Damásio e Bechara dividem os indutores de estados somáticos (ou emocionais) entre primários (p.ex.: encontrar uma cobra, ou a previsão de que se vai efectivamente encontrar uma) e secundários (p.ex.:a memória de ter encontrado uma cobra, ou imaginar a hipótese de a poder vir a encontrar). Estas situações podem ser transferidas para questões financeiras: receber a notícia de que se perdeu/ganhou dinheiro, ou prever que se vai efectivamente perder/ganhar (indutores primários) ou a memória de se ter perdido/ganho dinheiro ou colocar a hipótese de se vir a perder/ganhar dinheiro (indutor secundário).


Diagrama retirado do artigo "Deciding Advantageously Before Knowing the Advantageous Strategy" de Damásio, Bechara et al (Science, 1997) que resume as descobertas de Damásio e da sua equipa sobre a decisão instintiva e o marcador somático. [clique para ampliar]

Os indutores primários são desencadeados através da amígdala e são de curta duração, ou seja, são desencadeados sem grande esforço ou pensamento, antes mesmo de se ter consciência do que se passou. Os indutores secundários ocorrem no cortex ventromedial (CVM) a partir da reconstituição de imagens mentais. Em termos evolutivos, a amigdala é mais antiga, calculando-se que o referido mecanismo se desenvolveu para responder a situações de "luta ou foge". A zona do CVM é mais recente em termos evolutivos e embora seja mais sofisticada (envolve a noção de tempo futuro, da sua divisão em etapas, de antecipação de resultados e das tarefas necessárias em cada etapa, etç), a evolução manteve o mecanismo mais antigo, como é típico dos processos evolutivos. Embora menos sofisticados, os mecanismos associados aos indutores primários possuem a vantagem de ser mais rápidos ("raciocinar" é demorado.)

Outra proposta interessante é a explicação de paradoxos como o ser mais fácil realizar despesas com o uso de um cartão de crédito do que entregando directamente notas e moedas (dado o modo diferente como o CVM organiza a informação relativa ao que é "concreto/tangível" e ao que é "abstracto") ou o de tomarmos decisões diferentes (embora perante as mesmas probabilidades de ganhar ou perder) conforme esteja entre as opções uma "perda certa" ou um "ganho certo" - inconsistência que já tinha sido descoberta por Kahneman e Tversky e incorporada na sua Teoria da Prospectiva:


Amos Tversky

«A Teoria da Prospectiva sugere que os indivíduos tomam decisões irracionais, o que é contrário ao senso comum. (...) As pessoas simplesmente não gostam de perder. Por exemplo, as pessoas preferem um ganho seguro de 100€ a uma probabilidade de 50% de ganhar 200€ ou nada (ou seja, são adversos ao risco em face de um ganho seguro). Por outro lado, evitam uma perda certa de 100€ e optam pela hipótese com 50% de probabilidade de perder 200€ ou perder nada (ou seja, procuram o risco em face de uma perda certa). Esta observação contradiz os fundamentos da Economia actual, que retrata os consumidores como decisores racionais.


Daniel Kahneman

«As observações de Kahneman e Tversky foram engenhosas porque revelaram aspectos das escolhas económicas dos humanos que eram contrárias à sabedoria convencional. Contudo, a teoria não explicava porque é que os humanos decidiam daquela maneira; o modelo do marcador somático oferece umas explicação neurobiológica pela qual a informação que revela resultados seguros desencadeia respostas somáticas mais fortes do que a informação sobre resultados menos seguros. Portanto a certeza do ganho de 100€ desencadeia uma resposta somática mais forte do que a provável perda de 200€.

«Um ponto mais importante aqui, que provavelmente não foi abordado pela Teoria da Prospectiva, é que a "procura do risco" ou "aversão ao risco" podem ser modulados por estados somáticos "de fundo". i.e., estados somáticos pré-existentes desencadeados antes dos eventos económicos.»

(Damásio já tinha abordado este paradoxo no artigo "Investment Behavior and the Negative Side of Emotion")
Não deixa de parecer estranha esta forma de organização do processo decisional. No entanto, muitas outras descobertas da neurobiologia provam a coexistência, no cérebro humano, de mecanismos sofisticados de pensamento racional juntamente com outros de complexidade inferior. Tal é o caso de certos sinais de perigo, canalizados pela visão, que seguem um atalho para o sistema nervoso simpático (automático) antes mesmo de o cérebro consciente ter "pensado no assunto". Ou ainda o facto de um desenho de uma cara que nos olha influenciar o nosso comportamento, apesar de conscientemente sabermos que se trata só de um desenho.

[a continuar]

quinta-feira, outubro 27, 2005

Vida para além do iPod


NeuroLens: clique para ampliar

Rick Hoge, investigador do Massachusetts General Hospital, criou o software NeuroLens, para uso nas investigações de imageologia cerebral.

O programa, concebido para a plataforma Mac OS-X, baseia-se na apresentação de imagens tridimensionais do cérebro, as quais permitem identificar as zonas que são activadas durante as experiências de estimulação cerebral, técnica actualmente muito utilizada pela investigação em Neurobiologia. O programa encontra-se disponível em Beta público [1]. Veja também a informação facultada pela Apple.

[1] - "Beta público" é uma versão preliminar de um software, já funcional mas eventualmente ainda com bugs (falhas). Inicialmente era uma versão enviada para um grupo limitado de testadores (beta-testers) para ajustamentos finais no programa. A Internet popularizou o "beta público" como forma de divulgação e promoção de programas proprietários.

Reciprocidade indirecta

"Evolution of Indirect Reciprocity" - de Martin A. Nowak e Karl Sigmund, revista Nature (ed. 437, 27.Out.2005)
«Considera-se usualmente que a selecção natural favorece os fortes e egoistas que maximizam os seus próprios recursos à custa de outros. Mas muitos sistemas biológicos, e especialmente as sociedades humanas, estão organizados em torno de interacções altruísticas e cooperativas. Mas como pode a selecção natural promover o comportamento não-egoista? Vários mecanismos têm sido propostos, e uma volumosa análise da reciprocidade indirecta emergiu recentemente: eu ajudo-te e outro alguém me ajuda. A evolução da cooperação através da reciprocidade indirecta conduz à formação de reputação, julgamento moral e interacções sociais complexas, com necessidades cognitivas sempre crescentes.»

António Damasio em entrevista

Jornal El País de 21 de Outubro de 2005:


Edição sueca de "O Sentimento de Si"

P - Somos tão racionais como pretendemos?

R Não. Não somos racionais de forma natural. Temos a possibilidade de o ser mas mediante um tremendo esforço pessoal e devido a um contexto social e cultural que contribui para o tornar possível. Somos escravos das emoções e do ambiente. É possível sermos racionais se controlarmos as emoções negativas e potenciarmos as positivas.

P - E como é possível fazê-lo?

R - Abordo essa questão no meu último livro, "Ao encontro de Espinosa". Porque a questão tem muito que ver com a filosofia e a ética de Espinosa , que se confrontou com a questão de controlar as emoções negativas e fortalecer as positivas. Espinosa não tinha conhecimentos científicos, mas foi capaz de vislumbrar o futuro. Ambos os tipos de emoções - as positivas e as negativas - existem e a nossa racionalidade depende do equilíbrio entre ambas. Hoje a neurobiologia dá-nos os instrumentos necessários para compreender o que ocorre no cérebro e quais os factores que desencadeiam essas emoções.

P - Essa capacidade recoloca o eterno problema ético de qual o uso da ciência que é correcto e qual é menos nobre, e onde está a fronteira.

R - Temos que envolver os cidadãos neste debate, a sociedade deve estar informada para que decida quais os usos das descobertas científicas que são aceitáveis. Mas este mesmo dilema ocorre também acerca do uso correcto ou incorrecto dos meios de comunicação, do lazer e de outros aspectos da nossa sociedade. Para dirimir o que é correcto e o que não é, e para conhecer os riscos, necessitamos sobretudo de educação de qualidade. Nisto deve envolver-se a escola, os meios de comunicação, o mundo académico e os próprios cientistas.

P - Defende que o indivíduo faz uma primeira aproximação de forma emotiva, e só depois a avalia e, se for ocaso, corrige de forma racional, sopesando as opções?São imprescindíveis ambos os mecanismos, e se faltar uma deles, estaremos perante una anomalia?

R - Tradicionalmente pensava-se que as decisões correctas deviam ser tomadas sem a intervenção das emoções, baseando-se apenas na razão e na racionalidade. Mas eu defendo que as decisões correctas exigem três elementos: emoção, conhecimento e razão, e que devem operar em equilíbrio e mediante uma "negociação" entre o leque de possibilidades que permitem. A emoção existe para recordarmos decisões passadas, boas ou más, e as suas consequências. A emoção é uma bengala que nos ajuda a escolher entre opções e possibilidades, e que se complementa com o conhecimento e a razão.

P - Então Pascal tinha razão quando defendia que "o coração tem razões que a razão desconhece"?

R - Sim. Refiro essa citação no meu primeiro livro, "O Erro de Descartes
", para pôr em evidência a intuição de Pascal sobre o valor das emoções e como nos ajudam a tomar decisões e a desenvolvermo-nos com maior humanidade.

P - Estará cada um de nós programados de antemão para ser mais o menos sociável, ou altruísta?

R - Não. Todos somos muito semelhantes e, ao mesmo tempo, muito singulares. Temos umas características de comportamento e de personalidade comuns, mas também somos únicos e irrepetíveis como consequência do nosso processo individual de desenvolvimento e da nossa biologia, que marca as tendências. Tudo isso é o resultado de variações naturais e do nosso desenvolvimento, no qual estamos condicionados pelo ambiente: o meio em que estamos mergulhados e sobre o qual também exercemos influências.

Documentos relacionados:
  • Entrevista ao "Público", 2.Nov.2003
  • Entrevista com Desidério Murcho, Junho.2000

  • quarta-feira, outubro 26, 2005

    Becker dixit

    Opinião de Gary Becker, em resposta a um comentário sobre o carácter promissor da Neuroeconomia:

    «[A Neuroeconomia] pode ser promissora, mas até aqui ainda não produziu nada de valor para um economista. Mas é um campo ainda recente e pode melhorar no futuro.»

    Marcador somático


     António Damásio

    A edição de Agosto da revista Games and Economic Behavior é exclusivamente dedicada à Neuroeconomia, com importantes artigos sobre a tese do "marcador somático", desenvolvida por António Damásio e apresentada no seu livro "O Erro de Descartes".

    A revista inclui um artigo de Damásio e Bechara: "The somatic marker hypothesis: A neural theory of economic decision", e um outro sobre testes experimentais da referida teoria; "Experimental tests of the Somatic Marker hypothesis", e ainda um artigo de Bechara e outros: "Identifying individual differences: An algorithm with application to Phineas Gage".

    Comentaremos alguns destes artigos ao longo dos próximos dias.

    Neuroeconomia

    «A neuroeconomia usa os conhecimento sobre os mecanismos da mente para informar a análise económica. Ela abre a "caixa negra da mente, tal como a economia organizacional acrescenta detalhe à teoria da empresa. Os neurocientistas usam muitas ferramentas - incluindo a imageologia cerebral, comportamente de pacientes com lesões cerebrais localizadas, comportamento animal e registo da actividade dos neurónios. A chave para a economia é que o cérebro é composto de multiplos sistemas em interacção. Os sistemas controlados ("função executiva") interrompem os sistemas automáticos. As emoções e a cognição, ambos orientam as decisões. Tal como os preços e a alocação de recursos emergem da inteacção de dois processos - oferta e procura - as decisões individuais podem ser modelizadas como o resultado de dois (ou mais) processos interagindo. De facto, os modelos de "processo dual" deste tipo estão melhor fundamentados nos factos neurocientíficos, e com maior acuidade empírica, dos que os modelos de "processo-simples" (tais como o da maximização da utilidade)».

    "Neuroeconomics: How Neuroscience Can Inform Economics"
    de Colin Camerer, George Loewenstein e Drazen Prelec
    Journal of Economic Literature, Março de 2005

    [adaptado do meu outro blogue, Pura Economia]